O trabalho como laboratório do espírito
06/03/23O mundo contemporâneo em geral nos ensina que a felicidade é resultado do acúmulo de bens materiais e do ócio. Não precisar fazer nada é o objetivo de boa parte da população mundial. Se se fizer uma pesquisa perguntando a cada entrevistado se continuaria trabalhando caso não dependesse mais do salário, quantos porcento responderiam que sim? Enxergamos o trabalho como uma infeliz necessidade; como uma obrigação imposta pelas circunstâncias; como aquilo que precisamos fazer das oito às cinco em troca do dinheiro necessário para viver.
Essa forma de enxergar o trabalho, embora tão comum, me parece terrível. Ela sugere que o trabalho é aquilo a que nos dedicamos enquanto não estamos vivendo; que eu vivo durante os fins de semana e depois interrompo a vida para trabalhar por cinco dias, com alguns intervalos de prazer à noite, para então poder viver mais um pouco no fim de semana seguinte.
É uma perspectiva que nos empresa a passividade de uma bateria - que se carrega por cinco dias para ser usada por dois, e assim até que ela seja descartada.
Vamos, então, tentar olhar para o trabalho de uma perspectiva diferente, tomando como base os ensinamentos da doutrina espírita.
O Espiritismo nos ensina que estamos encarnados na Terra para evoluir. E que evoluímos a partir de provas, expiações e o esforço para aplacar nossos vícios e substituí-los por atos de elevada moralidade.
Em geral, as provas e expiações estão fora do nosso controle. Aparecem em nossas vidas por caminhos insondáveis. Vamos, então, nos concentrar naquilo que está totalmente no nosso controle, e no de ninguém mais: o esforço diário para destruir nossos vícios e elevar nossa condição moral.
Cumpre dizer, em primeiro lugar, que esse esforço torna-se impossível em isolamento. A interação social é o que gera o atrito, e é do atrito que nascem as oportunidades de transformação. Não há como ser caridoso se não existe ninguém em necessidade ao meu lado; ou como ser indulgente se não vejo ninguém fazendo escolhas que me desagradam; ou como atacar meu egoísmo se o outro não está presente para eu dar mais atenção a ele que a mim mesmo. De fato, o isolamento total talvez seja a epítome do egoísmo: ao me afastar, eu elimino a presença do outro e me concentro apenas no eu.
Pois bem, o trabalho, em geral, é um gerador incomparável de interações sociais, atritos, problemas a serem resolvidos e escolhas a serem feitas. Por isso o chamei de laboratório do espírito: porque podemos enxergá-lo como um conjunto diário de oportunidades de nos colocarmos a prova, de testarmos nosso livre-arbítrio e disciplina em prol de sermos útil a alguém, de nos observarmos e ajustarmos o curso dos nossos pensamentos e atitudes.
Pense em quantas vezes na sua última semana de trabalho alguém te trouxe um problema, te desagradou, te elogiou, te criticou, fez algo que te prejudicou ou de que você discordou. Como você agiu em cada uma dessas situações?
O egoísmo e o orgulho, acima de tudo, encontram múltiplos ensejos de aparecerem no cotidiano de um trabalhador do mundo capitalista, onde a competitividade e as aparências imperam. Se conseguimos nos colocar em estado de auto-observação e então identificar os momentos em que nosso egoísmo aflora e corrigir nossa atitude em direção à humildade e à caridade, temos a oportunidade de a cada dia dar passos na direção da evolução moral.
E há também o benefício ainda mais evidente da evolução intelectual: trabalhar significa frequentemente resolver problemas difíceis, que exigem aprendizado e esforço intelectual. Se você ainda por cima tem a chance de trabalhar na área que escolheu, então seu espírito está diariamente exposto à oportunidade de caminhar na direção da evolução intelectual que ele próprio elegeu para esta existência.
Se fôssemos capazes de vislumbrar o futuro da nossa eterna vida espiritual, talvez entendêssemos que o ócio é muito mais um castigo do que uma bênção, e que o trabalho para o ser humano, como para tudo mais na natureza, está intimamente ligado ao propósito de existir.